Consideráveis outros
Certo dia; no entanto, esse dia, ou dia desses, não o sei dizer com precisão; é uma data incerta. O tempo corre conosco e também ao largo de nós, por isso ele não deveria importar, deveria sim ser a entidade menos importante da nossa existência. No entanto, o tempo, com seu misterioso assombro, nos devora, nos consome e tudo traga no obscuro interior de sua imaterialidade. Tudo em si é corroído, tragado por ele. Não precisaríamos talvez levá-lo tão a sério, na verdade fingimos mesmo esquecer-se dele; distraídos com o traquejo cotidiano das nossas vidas, construímos àqueles caminhos que julgávamos dirigir-se à senda derradeira, como se um oráculo ou altar das recompensas e indulgências nos esperasse, consagrando nossas conquistas e perdoando nossos fracassos. A ilusão é a primeira aparição quando ainda estamos aninhados no colo, e sequer abrimos os olhos, e também a última. Porque de fato são as ilusões e os enganos as certas linhas obscuras de nossas biografias, situadas nos desvãos, que jogam um indelével assombro à tinta brilhante das nossas narrativas existenciais. Abrilhantando ou corroendo, como uma velha ratazana passeando nos labirintos da memória, grunhindo num linguajar grotesco, que poderíamos ter conhecido, mas que de fato é inacessível a qualquer coisa existente sobre a terra. Iludir-se é a forma que parece consagrada de lidar-se com tudo; e fora desse lugar aqui, onde ela reina, ainda não o sei. Não sei eu realmente, bastam-me algumas presumíveis tolices; outras tantas, julgo por ora desnecessárias. Bem nesse certo dia julguei, e também me veio o repentino pensamento de porque o(a) visitante (in)desejável por um bom tempo (ele aqui novamente) deixara de visitar-me, talvez porque tenha momentaneamente me abstraído de caminhar nas noites frias, nas ruas vazias, no silêncio da noite (mas sei que me acompanha e me espreita, certamente, e outras tantas vezes me pousa, ave noturna com suas garras longas e frias, nos ombros); julguei, portanto, que ter conhecido essa senhorita me trouxera algo diferente. Porque ela trouxe consigo inquirições, ou também seriam asseverações, de que algo assim tão indelével nos compõe, e o traço fundamental e imortal de nós mesmos se nos apresenta somente em transcendência; a ilusão nos rodeia, no encadeamento das causalidades corporificadas. Parece-nos, portanto, que nos fadamos por evoluir desse cosmo das ilusões. Maia nossa divindade frugal. Assim sou habitante transitório de mim mesmo, mas em decorrência de tantos insondáveis outros que me antecedem e me sucedem. Eis então uma intercessão! A vida nas ilusões, com o ser tão recuado, me parece tão boa, tão querida e confortável. Ocorre-me invariavelmente que este lugar é o único que possuímos, e somos possuídos por ele; talvez não o último. Assim me extasia a vivência aos sabores dessa vida plena e desse mundo maravilhoso. Espero as noites cálidas e o silêncio profundo para que me tome sempre o(a) visitante (in)desejável. Assim podemos sempre conversar, à deriva do tempo, sobre o tempo, nós e as coisas; consideráveis outros.
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