Mr. and Mrs. Picklesland

­- Querido me deixe brunir melhor essas platinas! Tudo é tão significativo para o momento não? Ah! Estamos vivendo dias terríveis... como pode tanta selvageria! Bons os tempos em que colhíamos dos nossos campos, tranquilos, sem esse abobamento selvagem dessa gente desclassificada. Acaso não está bom pra eles, querido, que lhes demos algum trabalho e possam comer?

- Querida, eu sei, eu sei! Mas, por favor, entenda de vez; estamos numa guerra, o destino do mundo civilizado depende desta guerra!

- E definitivamente já lustrou tanto esses paramentos meu amor! Que coisa!?

- Lembre-se meu querido, é como àquela linda estola que ganhou naquela cerimônia cívica; até ela ficaria muito bem atravessando essas estrelas aí.

- Você sempre me convence meu amor como é importante conservar o estilo, mesmo nas horas mais terríveis e difíceis, como as que temos passado.

[Breve pausa, e o vento languidamente lambe a cortina quase transparente... Só ao fundo, naquele horizonte apocalíptico, se poderia ver os clarões e o barulho ensurdecedor das explosões. Uma poeira misturada densa, emaranhada, atravessada por luzes incandescentes avermelhadas e azuladas; tudo imbricado num horrível cheiro de morte].

“Parece pintado de sangue e pó esse horizonte, ainda bem que não se vê pernas, braços e vísceras daquelas crianças; gente selvagem! Voando pelos ares... Tenho certeza que minha pobre esposa não ia aguentar; a segurança e o amor aos nossos filhos e netos pra ela é tudo!”. Refletiu ligeiramente           Mr. Picklesland.

- Querido você viu aquelas pessoas falando que somos assassinos, cruéis; que horror! Racistas, imagina! Temos culpa se tem gente que só quer tomar as coisas dos outros? E esses ativistas querido? Veja só, uma hora se inclinam à defesa das mulheres, noutra de africanos ou latinos, índios; paganistas! Outra dos animais... animais, veja só! Será que eles não têm o que fazer? Não percebem que tem gente que só quer trabalhar e viver em paz?

- Mas diga amor, a reunião hoje é importante, não? Eu sei que você vai falar com todos esses pares, generais, esses presidentes, ministros, banqueiros! E àqueles nossos amigos das TVs... estarão presentes?! Mas é você que decide muita coisa querido, eu sei... Deus nos seja misericordioso! Só desejo que isso acabe logo.

[Mr. Picklesland, um pouco irritado, hirsuto, em sua impecável fardagem. Esse negócio de decidir sobre vidas e mortes, questões geopolíticas complexas, etc. etc. é só mais um trabalho, trabalho, trabalho; que nem pensem que é fácil ordenar operações, conduzir brigadas; inimigos são inimigos e só]. “Bombardeios, bombardeios...”, introspectou Mr. Pickelsland. 

- Querida, acalme-se! São coisas que serão resolvidas, e não veja tantas notícias meu amor; esses idealistas, na verdade são todos comunistas, e sempre querem nos fazer pensar que somos nós as bestas; que estamos matando crianças, mulheres... Terroristas, nós! Já viu tamanho absurdo!? E não ligue pra esses ativistas, o Governo sabe como controlá-los, sabe muito bem o que fazer com eles. Existe um propósito pra eles querida, acredite; assim como existe o nosso. Já lhe disse, não? Ovelhas balem só pra organizar o próprio rebanho [já mais que um pouco irritado V. Ex.ª Mr. Picklesland!].

- Querido, se puder você volta para o jantar?

- Tudo bem, tudo bem querida [beijando-lhe a face]! Ainda teremos muitos jantares felizes juntos.

 

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