VISITAS DO ARTISTA


Para Gilberto Rosenmann

Fizesse sol ou fizesse chuva lá vinha ele! Quase todos os dias, meio que cambaleando por causa do antigo acidente de automóvel, lá vinha ele. Algumas vezes trazia nas mãos uma sacolinha com alguns doces, ou um quadro pintado, outras o pão que já tinha comprado na Viana:
Pro café. Dizia.
Posso ligar pra Solange?
Claro Gil! Senta aí e liga pra ela.
E depois disso ficávamos, por um bom tempo, em silêncio; outras vezes ríamos, antes de desandar no bate-papo. Do que ríamos? Até hoje não sei direito. Só sei que ríamos e depois vinha um breve silêncio, por alguns segundos. Parecia uma espécie de mantra; sei lá. Um tipo de cumprimento especial que só existia entre nós dois, como esses cumprimentos de chegadas e partidas, cerimoniosos ou lacrimosos, que encontramos entre tribos indígenas.
Por vezes, depositava os embrulhos no chão ou os segurava entre as pernas mesmo. E soltava umas pérolas. Que já eram consenso, pois já sabíamos de antemão seus efeitos metafóricos e as circunstâncias sociopolíticas que sempre mirávamos e fulminávamos nesses nossos diuturnos convescotes literários.
Sabe Zé; quem não tem raízes, carrega valises!
E quem não tem valisere carrega as varizes! Por vezes, eu retrucava.
E ríamos como dois meninos bobos. Mas era um riso meio que desencantado, um riso dos libertados, um jeito de ser daqueles que já haviam vivido de tudo e que sabiam que a vida para nós não era mais feita de compêndios, grandes projetos e redundâncias. Era feita sim de breves momentos, instantâneos relâmpagos, passadiços instantes; como se já a recitássemos como um poema quase visual. A linguagem dos nossos encontros era uma linguagem símbolo.
E assim nos despachávamos a conversar sobre tudo; poesia, literatura, música, política, cultura. A crise do país, a arte como libertação dos homens; a fé, a necessária prisão dos povos. Sionismo, antissemitismo, América Latina, Estados Unidos; o Brasil. O Brasil era um tema recorrente em nossas conversas. Como pode o Brasil – tão culturalmente rico e diverso, concordávamos – ser ainda uma colônia. Uma colônia de banqueiros, do capitalismo internacional, uma colônia de empreiteiros (sem saber, antecipávamos a lava jato!), um país da alienação midiática. E assim íamos levando prosa e na mais das vezes bebericando um mate. Pois, já lá na chegada, entre os risos e silêncios, eu já ia dizendo:
Tomamos um chimarrão?
Claro!
Claro. Era sempre um claro; um sim, um sorriso, uma espiritualidade positiva. Jamais o vi espalhando desalentos, jamais veio trazer tristezas; entrava como uma brisa pela porta e como uma brisa partia.
Entremeando a cuia quente com nossas quimeras poéticas, certos assuntos por vezes se destacavam; um fato político local, uma exposição de arte, uma novidade literária (embora nossa praia fosse mesmo o passado, poetas e poetisas de outrora; isto é, dos tempos mais idos). Ainda ousávamos chamar as poetas de “poetisas”, coisa que nem se usa mais! Leminski estava quase sempre presente – ele gostava do polaco, eu já preferindo, sem dúvida nenhuma, a Kolody. Gostávamos de falar de filósofos, ele aceitava o meu Nietzsche, minha misantropia e meu niilismo; nunca me censurou por esse fanatismo. Enquanto a cuia ia e vinha, saia lá uma piada; um chiste. E ríamos de novo.
Zé, diga ai; na verdade não é o poeta um colecionador de estórias, que ele refaz como ideia nova?
Sei não Gil! (Já que de Gilberto quase nunca o chamava) Eu refletia.
Às vezes acho que o poeta é um lunático, um quebrador de sentidos e palavras; como as pedras se quebram nas lavras.
Lunático! Isso ai Zé, o poeta e o artista são uns aluados. Tudo é uma questão ideoplástica; tudo que se cria é a partir de uma ideoplastia!
Ideoplastia, um charmoso conceito? Na verdade pouco nos interessava qualquer conceito, nossa terra estava livre de cercas, nosso convescote se dava no descampado.
Nos últimos tempos começou a aparecer de bengala. Ficava até mais elegante com aquela bengala e a barba branca. Mas sua verdadeira elegância era o desprovimento de tudo, a liberdade não vigiada, o heretismo libertário (seremos dois eternos heresiarcas!). E assim foi que repentinamente deixou de aparecer; achei que andava por aí, espalhando abanações e solapando as fés cegas.
Teve um derrame! Disseram-me os meninos.
Tudo foi muito rápido. Resolveu do nada dar um salto pra eternidade, foi destilar sorrisos e ideoplastias em outras paragens. Fiquei chocado e triste com sua heresia em partir assim sem nenhuma despedida – mas ele, autêntico que era, nunca abandonaria o seu estilo. Sinto sua falta estimado amigo! E hoje sei que o poeta não é só um colecionador de estórias, memórias, palavras e sentidos quebrados; é, sobretudo, um colecionador de ausências.

Comentários

Angela Fakir disse…
Colecionador de ausências... Texto lindo, consegui ver dois amigos entre risos, prosas e silêncios...Me fez lembra esse Poema do Neruda:

Acontece

Bateram à minha porta em 6 de agosto,
aí não havia ninguém
e ninguém entrou, sentou-se numa cadeira
e transcorreu comigo, ninguém.

Nunca me esquecerei daquela ausência
que entrava como Pedro por sua causa
e me satisfazia com o não ser,
com um vazio aberto a tudo.

Ninguém me interrogou sem dizer nada
e contestei sem ver e sem falar.

Que entrevista espaçosa e especial!

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