Publicado pela Câmara Brasileira dos Jovens Escritores, 2011


O CAMINHO  

As narinas dos cavalos arfavam, soltando labaredas de vapor quente. A manhã fria se punha estendida pela terra. Salazar pensava e ardia em febre, preso à algibeira do cavalo negro do seu detrator; à noite dormira entre os animais e o cheiro deles já lhe era familiar, sentia-se parte do mundo deles, como irmãos. Não porque os animais são maltratados, açoitados e amaldiçoados como ele; mas porque tinham afinidades, muitas afinidades. O instinto severo e espontâneo os unia, a vontade de liberdade lhes era comum, a ânsia de cruzar largos campos, continentes inteiros, ir para o poente, atravessando caminhos desconhecidos e rios selvagens. Esse espírito primitivo e essa sanha os aparentavam, intimamente.
Lentamente a tropa foi tomando caminho pela densa mata, através da estrada indicada pelos canibais. Salazar arrastava-se, seu corpo já não lhe pertencia mais. A tropa aligeirou-se, para trás ficou o rio que os selvagens chamavam Itararé. O índio enrodilhou-se em torno de Salazar.
- “Juruá, Peabiru!”. Batendo-lhe violentamente nas costas apontou para o alto da escarpa arenosa, que se divisava logo à saída da densa mata.
“Lá é o oeste, acho?”, pensou Salazar. O oeste, onde o sol se põe e onde um povo mítico mora nas montanhas altas e se veste de ouro e prata. Pelo menos é isso que ouviam todos os degredados, aventureiros, conquistadores e escravos, ou tornado escravos - como ele, Salazar! - ao aportarem nestas terras, campos e matas sem fim, depois de cruzarem o grande oceano. Salazar ainda se lembrava do porto de chegada. “Superagui”, diziam os selvagens. Antes de ser arrastado como escravo na tropa do capitão espanhol, através da grande serra, ele amara como ninguém aquela baía maravilhosa e a índia com que foi presenteado.
A tropa ascendeu à escarpa através das pequenas trilhas, as rochas arenosas se esfacelavam nas patas dos cavalos. O capitão já assentava a tropa no alto da escarpa, enquanto lá embaixo Salazar e outros prisioneiros escalavam as rochas íngremes. O índio gritava: “Juruá! Juruá!”. No alto da escarpa ele achou linda a vista dos campos e planaltos do leste que deixavam. Até mesmo para ele, um degredado, abandonado por deus, a poesia parecia a única coisa com a qual se podia descrever aquela visão esplêndida. Salazar agora sabia, passara a desejar essa terra, sua única companheira e nela poderia morrer. Quando se olhava para o oeste, imensos campos apareciam entrecortados de matas de pinheiros nos grandes vales. A brisa era suave e aromática. O caminho se divisava, delineado pelos campos. “Peabiru!”, mugiu Salazar.
Depois do descanso a tropa tomou rumo novamente. Dia e noite galgando o chão bruto, a terra que fora branca começava a ficar vermelha. Mais bruta e forte, como a dor, a angústia e o amor perdidos no coração de Salazar. À noite, um véu espesso cobria os animais e homens em descanso, quando longe se ouviu um grunhido aterrorizante. Repentinamente, o índio lhe açoitou as costas.
- “Jaguará-etê!”. Passando-lhe uma caneca de porongo cheia do que chamam cimarrõn os espanhóis.
- “Caá”. Falou. Rindo da sua cara assustada e do seu martírio.
Dos campos vieram outras matas ao longo do caminho. A terra cada vez mais vermelha, as matas mais úmidas e densas. Atravessaram o rio das corredeiras do diabo que desemboca no grande rio dos sete saltos. Salazar, exausto, escravo da vida que não escolhera trilhar, sonhava com o reino dos homens de ouro e prata e se imaginava liberto, como Jaguará-etê. Via seus dentes afiados e seu olhar furtivo em meio às matas. “Se fosse eu uma Jaguará, o que faria?”. Pensava Salazar. “Uivaria e todos os homens se assustariam, atacaria as tropas, fugiria, livre como só ela pode ser!”. Estes pensamentos agora o atormentavam, em delírio, quase morto, um trapo, um escravo, um filho de sangue mouro e lusitano perdido nas mãos daqueles que dominam a terra. Não a amam como ele. “Ivaí é o homem, liberdade é morrer!”. Murmurou Salazar. E esse pensamento dormiu com ele.
A aurora trouxe o ruído moroso e leve do grande rio dos sete saltos. Pela sua margem esquerda a tropa desceu, fazendo três pousos. O capitão iria pelas grandes quedas do rio que os selvagens chamam Iguassu. Agora ele desconfiava. Não iriam para a terra do povo de ouro e prata, iriam para a capital espanhola do Guairá. O Peabiru ficou longe e eternamente na memória de Salazar. O capitão resolvera buscar víveres que seriam trocados por mate, Caá, produzido pelos padres das cidades do Guairá. Três dias haviam ficado no Guairá, na Ciudad Real, traficando com os padres. A cidade o impressionou, como podia existir no coração das selvas.
Numa manhã cinzenta chegaram às grandes quedas. O coração de Salazar disparou, nunca vira um cenário mais imponente e belo, quase desfaleceu. Um arco-íris parecia fundir-se com as águas que mergulhavam na garganta de pedras negras e cortantes, o Iguassu fluía liberto. O barulho tomava tudo. O espírito de Jaguará-etê gritava no peito de Salazar. Ele, só ele, o náufrago, o degredado, o mestiço mouro e lusitano, o pai de filhos índios, o escravo, podia sentir tanta beleza dessa terra selvagem e viva. Essa terra sem nome, com tantos deuses tirânicos. Terra que os selvagens da costa chamam Pindorama.
Quis ser um rio, o Ivaí, ou o Iguassu, quis ser um caminho, o Peabiru. Quis ser livre como o poderoso rio do sul. Quis morrer.
Na madrugadinha, na aurora silenciosa, só ainda pequenos raios de sol despontavam e uma chuva fina e fria ainda lembrava a noite tropical. A tropa dormia, o capitão e o índio dormiam. Juan Salazar prostrou-se, livre, à beira da grande garganta. “Quem sou eu? Em que ano estamos? Não sei e o que isso importa; outros darão novos nomes a essa terra, a essas florestas, campos, rios e vales de rochas primitivas. Quem saberá de mim que tudo isso vi e tanto amei?”. Admirou-se finalmente daquele cenário divino. Lentamente fechou os olhos, precipitou-se para o abismo e seu corpo desapareceu nas águas.


                                                                                                     Setembro, 2010


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