Publicado pela Câmara Brasileira dos Jovens Escritores, 2011
Disponível em: http://www.camarabrasileira.com/cmn11-018.htm
O CAMINHO
As narinas dos
cavalos arfavam, soltando labaredas de vapor quente. A manhã fria se punha
estendida pela terra. Salazar pensava e ardia em febre, preso à algibeira do
cavalo negro do seu detrator; à noite dormira entre os animais e o cheiro deles
já lhe era familiar, sentia-se parte do mundo deles, como irmãos. Não porque os
animais são maltratados, açoitados e amaldiçoados como ele; mas porque tinham
afinidades, muitas afinidades. O instinto severo e espontâneo os unia, a vontade
de liberdade lhes era comum, a ânsia de cruzar largos campos, continentes
inteiros, ir para o poente, atravessando caminhos desconhecidos e rios
selvagens. Esse espírito primitivo e essa sanha os aparentavam, intimamente.
Lentamente a
tropa foi tomando caminho pela densa mata, através da estrada indicada pelos
canibais. Salazar arrastava-se, seu corpo já não lhe pertencia mais. A tropa
aligeirou-se, para trás ficou o rio que os selvagens chamavam Itararé. O índio
enrodilhou-se em torno de Salazar.
- “Juruá,
Peabiru!”. Batendo-lhe violentamente nas costas apontou para o alto da escarpa
arenosa, que se divisava logo à saída da densa mata.
“Lá é o oeste,
acho?”, pensou Salazar. O oeste, onde o sol se põe e onde um povo mítico mora
nas montanhas altas e se veste de ouro e prata. Pelo menos é isso que ouviam
todos os degredados, aventureiros, conquistadores e escravos, ou tornado
escravos - como ele, Salazar! - ao aportarem nestas terras, campos e matas sem
fim, depois de cruzarem o grande oceano. Salazar ainda se lembrava do porto de
chegada. “Superagui”, diziam os selvagens. Antes de ser arrastado como escravo
na tropa do capitão espanhol, através da grande serra, ele amara como ninguém
aquela baía maravilhosa e a índia com que foi presenteado.
A tropa ascendeu
à escarpa através das pequenas trilhas, as rochas arenosas se esfacelavam nas
patas dos cavalos. O capitão já assentava a tropa no alto da escarpa, enquanto
lá embaixo Salazar e outros prisioneiros escalavam as rochas íngremes. O índio
gritava: “Juruá! Juruá!”. No alto da escarpa ele achou linda a vista dos campos
e planaltos do leste que deixavam. Até mesmo para ele, um degredado, abandonado
por deus, a poesia parecia a única coisa com a qual se podia descrever aquela
visão esplêndida. Salazar agora sabia, passara a desejar essa terra, sua única
companheira e nela poderia morrer. Quando se olhava para o oeste, imensos
campos apareciam entrecortados de matas de pinheiros nos grandes vales. A brisa
era suave e aromática. O caminho se divisava, delineado pelos campos.
“Peabiru!”, mugiu Salazar.
Depois do
descanso a tropa tomou rumo novamente. Dia e noite galgando o chão bruto, a
terra que fora branca começava a ficar vermelha. Mais bruta e forte, como a
dor, a angústia e o amor perdidos no coração de Salazar. À noite, um véu
espesso cobria os animais e homens em descanso, quando longe se ouviu um
grunhido aterrorizante. Repentinamente, o índio lhe açoitou as costas.
-
“Jaguará-etê!”. Passando-lhe uma caneca de porongo cheia do que chamam cimarrõn
os espanhóis.
- “Caá”. Falou.
Rindo da sua cara assustada e do seu martírio.
Dos campos
vieram outras matas ao longo do caminho. A terra cada vez mais vermelha, as
matas mais úmidas e densas. Atravessaram o rio das corredeiras do diabo que
desemboca no grande rio dos sete saltos. Salazar, exausto, escravo da vida que
não escolhera trilhar, sonhava com o reino dos homens de ouro e prata e se
imaginava liberto, como Jaguará-etê. Via seus dentes afiados e seu olhar
furtivo em meio às matas. “Se fosse eu uma Jaguará, o que faria?”. Pensava
Salazar. “Uivaria e todos os homens se assustariam, atacaria as tropas,
fugiria, livre como só ela pode ser!”. Estes pensamentos agora o atormentavam,
em delírio, quase morto, um trapo, um escravo, um filho de sangue mouro e
lusitano perdido nas mãos daqueles que dominam a terra. Não a amam como ele.
“Ivaí é o homem, liberdade é morrer!”. Murmurou Salazar. E esse pensamento
dormiu com ele.
A aurora trouxe
o ruído moroso e leve do grande rio dos sete saltos. Pela sua margem esquerda a
tropa desceu, fazendo três pousos. O capitão iria pelas grandes quedas do rio
que os selvagens chamam Iguassu. Agora ele desconfiava. Não iriam para a terra
do povo de ouro e prata, iriam para a capital espanhola do Guairá. O Peabiru
ficou longe e eternamente na memória de Salazar. O capitão resolvera buscar
víveres que seriam trocados por mate, Caá, produzido pelos padres das cidades
do Guairá. Três dias haviam ficado no Guairá, na Ciudad Real, traficando com os
padres. A cidade o impressionou, como podia existir no coração das selvas.
Numa manhã
cinzenta chegaram às grandes quedas. O coração de Salazar disparou, nunca vira
um cenário mais imponente e belo, quase desfaleceu. Um arco-íris parecia
fundir-se com as águas que mergulhavam na garganta de pedras negras e
cortantes, o Iguassu fluía liberto. O barulho tomava tudo. O espírito de
Jaguará-etê gritava no peito de Salazar. Ele, só ele, o náufrago, o degredado,
o mestiço mouro e lusitano, o pai de filhos índios, o escravo, podia sentir
tanta beleza dessa terra selvagem e viva. Essa terra sem nome, com tantos
deuses tirânicos. Terra que os selvagens da costa chamam Pindorama.
Quis ser um
rio, o Ivaí, ou o Iguassu, quis ser um caminho, o Peabiru. Quis ser livre como
o poderoso rio do sul. Quis morrer.
Na madrugadinha,
na aurora silenciosa, só ainda pequenos raios de sol despontavam e uma chuva
fina e fria ainda lembrava a noite tropical. A tropa dormia, o capitão e o
índio dormiam. Juan Salazar prostrou-se, livre, à beira da grande garganta.
“Quem sou eu? Em que ano estamos? Não sei e o que isso importa; outros darão
novos nomes a essa terra, a essas florestas, campos, rios e vales de rochas
primitivas. Quem saberá de mim que tudo isso vi e tanto amei?”. Admirou-se
finalmente daquele cenário divino. Lentamente fechou os olhos, precipitou-se
para o abismo e seu corpo desapareceu nas águas.
Setembro, 2010
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