DEDICAÇÃO E
ARREBATAMENTO
Hoje me dediquei com afinco, e com um
insubordinado prazer, a algo que me daria uma imensa alegria. Uma alegria daquelas
que só possuem as crianças e os loucos; sim as crianças e os loucos! Pois só
estes vivem plenamente a alegria do instante e o regozijo repentino; assim, sem
pensar. Pensar. Ah pensar! É por vezes quase morrer; pensar é uma forma sutil
de desfalecimento contínuo, morte do prazer, do que não se absolutiza, do
fluído, do indelével, para a glória, para a eterna glória da construção da
civilização. Como é necessário o pensar para subsistir! Não o é para viver, mas
o é, extremo e desesperado, para sobreviver. E como precisamos sobre-viver!
Traçar essa linha tênue de história e cultura sobre nossa nudez ancestral! Que
primatas seríamos nós; se nus de tudo não vestíssemos as belas tramas coloridas
da cultura, da língua articulada e de consciências mobilizadas para uns fins:
que fins? Supor que construímos a civilização, deixando nossos rastros, nossa
obra, os ecos de nossas vozes, os traços de nossas paixões, amores, ódios e
desejos na teia da história. Mas é com isso que combatemos os momentos de
trevas, as intrusões de ódios sob as bandeiras das toscas morais. Pensar. Ficar
penso, saindo da centralidade da linha reta, da posição ereta, como um galho
que penso, torto, levado pelo vento se inclina e toca a água, levemente, e
conhece dela a delícia de sua amabilidade, ambos usufruindo o prazer de suas
particularidades. Isto, pensar! Inclinar-se para todos os lados na percepção
das belezas diversas do mundo e da sua maravilhosa heterogeneidade. Mas a que
me dediquei mesmo hoje como grande afinco? Ah sim! A não pensar, como nos ensinaram
os filósofos e poetas do Tao. Me senti como as crianças e os loucos, livre e
leve, como o voo de um pássaro. Só algum tempo depois voltei de lá! E quando
despertei a sociedade voltou-se novamente contra mim. Arrebatando-me! Aspirei
seus aromas, suas cores, suas luxúrias e suas incríveis imagens; e desejei
profundamente esse seu arrebatamento de vida, alegria e liberdade. E pensando;
fui tomado novamente por um universo de imagens e por uma incrível,
indescritível saudade. Sem querer descobri o que é isso. O que faz os grandes
seres? Isso; tomados pelas imagens do pensar são dedicados a si, e a longa
ausência de si mesmos, para depois juntarem-se e traçarem a infinitude. Dedicação
e arrebatamento! E saudade.
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