Texto para a exposição Forjada Pelo Tempo do Coletivo Duas Marias, das grandes artistas Malu Rebelato e Nani Nogara

Setembro, 2019

UMA FIGURA: MUITAS IMAGENS      


Talvez não seja tão árduo definir formas e figuras, quando estas são concebidas apenas através das evidências aparentemente empíricas. Mas o mesmo não se pode dizer daquilo que a elas é sutil, quase imperceptível, o que é simbólico para além dos fenômenos que nos assaltam os olhares e as primeiras sensações.
Assim é o caso desta obra em movimento Forjada pelo Tempo do Coletivo Duas Marias. Ela é real e concreta, contém os traços marcantes deixados pela natureza e pela cultura do feminino: do feminino que se engendra, se constrói e se reconstrói ao longo da história. Mas, ao mesmo tempo – e aqui reside sua magnitude poética –, recusa quaisquer insistências dos entendimentos somente dualistas, das particularidades dos gêneros e das representações factuais. Como em Virginia Woolf. O feminino aqui é uma transmigração!
Conduzido por este, os entes animados pelas tradições culturais e pelos sonhos se entreligam, se fundem, pois mutuamente se representam e são representados. E por se diferenciarem assim se juntam, em suas mais profundas contradições. Transpondo o que denominamos “aparência” e “humanidade”:

Como um fruto ou uma flor que extemporânea espalha certa fragrância mágica por um jardim encantado e lentamente dá outros sentidos à paisagem.

“Não sou o Ser que espera que eu seja!”. Bradam, portanto, estas insígnias aqui forjadas: “pois que sou as muitas representações que habitam o feminino. No fio que tece minha trajetória, uma Deusa do Norte pode forjar minha face, uma ‘primeira mulher’ meu corpo, uma Maria a minha mente. Mas divindades transgressoras compõem minha alma, por isso também sou Lilith e Madalena para todas as Marias libertar. Assim te mostro como amar, desejar, educar, criar e também pecar. Não o pecado que tua moral me impõe, mas o que em mim me liberta e de ti remove a venda que insiste teus olhos cerrar”.
Tens coragem de colher a flor ou morder o fruto místico que agora brota neste jardim?
E para que este feminino nos invada, para além da natureza míope da nossa maneira de olhar, as Moiras continuarão tecendo, rompendo e ligando o fio desta       existência – que é também o fio de todas as vidas a se entrelaçar. E esta urdidura forma nossas roupas, corpos, espíritos e então devemos dançar para as divindades não nos abandonar.
Pois habitando estas peles surradas e envelhecidas esta transmigração rompe as formas, além do negro e do branco, do corpo sensual e geracional. Além das ranhuras e fissuras que causa o tempo. Nascendo e perecendo nesta teia, somos conduzidos por esses frutos e flores astrais – Valquírias – e pelas mãos hábeis de Penélope e Ariadne esta construção e desconstrução do olhar nos liberta para transcender e encontrar um caminho de volta para essa humanidade perdida.
E talvez lá encontremos Nanã ou Khôra (χώρα), um coração de todas as imagens ou todas as imagens em um coração, recitando um antigo poema de Safo:

“oἶον τὸ γλυκύμαλον ἐρεύθεται ἄκρωι ἐπ᾽ ὔσδωι, ἄκρον ἐπ᾽  ἀκροτάτωι, λελάθοντο δὲ μαλοδρόπηες, οὐ μὰν ἐκλελάθοντ᾽, ἀλλ᾽ οὐκ ἐδύναντ᾽ ἐπίκεσθαι”.

“assim a maçã doce se avermelha no cimo do ramo, a mais alta no mais alto ramo... Esqueceram-se dela os colhedores? Não, não a esqueceram. É que não puderam alcançá-la!”.   

                             


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