Texto para a exposição Forjada Pelo Tempo do Coletivo Duas Marias, das grandes artistas Malu Rebelato e Nani Nogara
Talvez não seja tão árduo definir formas e figuras, quando estas são
concebidas apenas através das evidências aparentemente empíricas. Mas o mesmo
não se pode dizer daquilo que a elas é sutil, quase imperceptível, o que é
simbólico para além dos fenômenos que nos assaltam os olhares e as primeiras
sensações.
Assim é o caso desta obra em movimento Forjada pelo Tempo do Coletivo
Duas Marias. Ela é real e concreta, contém os traços marcantes deixados
pela natureza e pela cultura do feminino: do feminino que se engendra, se
constrói e se reconstrói ao longo da história. Mas, ao mesmo tempo – e aqui reside
sua magnitude poética –, recusa quaisquer insistências dos entendimentos somente
dualistas, das particularidades dos gêneros e das representações factuais. Como
em Virginia Woolf. O feminino aqui é uma transmigração!
Conduzido por este, os entes animados pelas tradições culturais e pelos
sonhos se entreligam, se fundem, pois mutuamente se representam e são
representados. E por se diferenciarem assim se juntam, em suas mais profundas
contradições. Transpondo o que denominamos “aparência” e “humanidade”:
Como um fruto ou uma flor que extemporânea espalha certa fragrância
mágica por um jardim encantado e lentamente dá outros sentidos à paisagem.
“Não sou o Ser que espera que
eu seja!”. Bradam, portanto, estas insígnias aqui forjadas: “pois que sou as
muitas representações que habitam o feminino. No fio que tece minha trajetória,
uma Deusa do Norte pode forjar minha
face, uma ‘primeira mulher’ meu corpo, uma Maria
a minha mente. Mas divindades transgressoras compõem minha alma, por isso
também sou Lilith e Madalena para todas as Marias libertar. Assim te mostro como
amar, desejar, educar, criar e também pecar. Não o pecado que tua moral me
impõe, mas o que em mim me liberta e de ti remove a venda que insiste teus
olhos cerrar”.
Tens coragem de colher a flor ou morder o fruto místico que agora brota
neste jardim?
E para que este feminino nos invada, para além da natureza míope da nossa
maneira de olhar, as Moiras
continuarão tecendo, rompendo e ligando o fio desta existência – que é também o fio de todas
as vidas a se entrelaçar. E esta urdidura forma nossas roupas, corpos, espíritos
e então devemos dançar para as divindades não nos abandonar.
Pois habitando estas peles surradas e envelhecidas esta transmigração
rompe as formas, além do negro e do branco, do corpo sensual e geracional. Além
das ranhuras e fissuras que causa o tempo. Nascendo e perecendo nesta teia, somos
conduzidos por esses frutos e flores astrais – Valquírias – e pelas mãos hábeis de Penélope e Ariadne esta construção
e desconstrução do olhar nos liberta para transcender e encontrar um caminho de
volta para essa humanidade perdida.
E talvez lá encontremos Nanã ou
Khôra (χώρα), um coração de todas as imagens ou todas
as imagens em um coração, recitando um antigo poema de Safo:
“oἶον τὸ γλυκύμαλον ἐρεύθεται ἄκρωι ἐπ᾽ ὔσδωι, ἄκρον ἐπ᾽ ἀκροτάτωι, λελάθοντο δὲ μαλοδρόπηες, οὐ μὰν
ἐκλελάθοντ᾽, ἀλλ᾽ οὐκ ἐδύναντ᾽ ἐπίκεσθαι”.
“assim a maçã doce se avermelha no cimo do ramo, a mais alta no mais alto
ramo... Esqueceram-se dela os colhedores? Não, não a esqueceram. É que não
puderam alcançá-la!”.
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