VISITANTE INDESEJÁVEL
Sentou-se
próximo à mesa com alguns livros rotos já sobre ela. Um vaso antigo, não tão antiquado
talvez, um pouco desgastado pelo tempo e o passar de muitos anos, encimava-se
com um pequeno arranjo de flores, artificiais misturadas às naturais que já
desfaleciam; umas rosas, um lírio e algumas folhas esverdeadas. Bem à sua
frente, onde há muito mirava, um quadro com a figura altiva e vaidosa dos pais.
Aquele claustro cheirava antiguidade, tudo ali o remetia para um mundo perdido,
um tempo já por quase todos esquecido; memórias, sorrisos e lágrimas soterradas
em longínquos crepúsculos. Móveis antiquados, um tapete ancestral que vertia
ainda as vozes de vendedores abusivos gritando nas feiras livres; que ainda,
sutilmente, guardava risos soltos de crianças correndo e gritando pelos
cômodos. Tudo ali jazia, carregado de histórias incríveis e também tenebrosas.
E essas vozes, esses gritos constantes, apavorantes, diuturnamente o
atormentavam. A cada momento que erguia
os olhos, pela porta alguém passava, falando, tramelando. A mãe com uma xícara
de chá, o pai com seus passos pesados, uma irmã com seus longos cabelos cor de
sol. A mulher amada com seus cabelos e olhos negros e uma voz encantadora.
Ecoando. “Fiz um chá!”; “Beijos meu filho”; “Sabia que eu te amo!”. Vozes,
sons, imagens que permanecem, torturando. Fazendo sonhar de novo. Retomou a
leitura; um sobre a perna descansava, poesias, o outro às mãos só fazia o
ambiente ainda mais misterioso, quase assombrado. Letras vivas de uns contos que
com a realidade das coisas mortas se entrelaçavam. Eis ai o grande mistério que
sempre o atormentara; vida e memória, corpo, matéria e história, passado e
presente, sentimentos. Como conviver com essa multidiversidade numa mesma
dimensão. O passado já é o sonho do futuro realizado? Sempre indagara. O que é
(ou é?) a vida senão os delírios vãos de ser e suas temporalidades? Enfadou-se
tão logo caiu a noite mais escura. Precisava caminhar, sair para rua, respirar
aquele ar inebriante do cheiro das coisas de fora, aquela dispersão para fora
dos tempos perdidos. Lá estava uma lua incrível, indo pra minguar, alta num céu de
negrume, os sons de algumas vozes e passos se ouviam, misturados em sua ária
solitária. Essas pessoas, as atravessava; não o viam, nem o cumprimentavam. É
compreensível, todos estão assim perdidos em seus cotidianos dispersos? Caminhava,
respirando esse ar úmido e solitário dessa noite mal iluminada. Logo ele
apareceu. Sempre o via, o tagarela e simbolista, o irrealista, cruzando seu
caminho e o questionando sobre sua, nossa, humanidade; glórias e decadências.
Em alguns momentos o odiava! Que queres agora? O que será? Vai me atormentar com suas
loucas histórias de multidimensão. O passado e seus mortos habitando a dimensão
dos vivos. Os vivos como uma espécie muito sutil de mortos! Lembrou-se das suas
leituras do Nietzsche. Sentiu um calafrio quando o viu, com aquele sorriso
irônico e superior de quem pensa decifrar grandes mistérios. – E aí; ainda
continua naquele claustro, lendo aqueles livros amarrotados e mirando imagens
evanescidas? – Não sei! Respondeu seco. Não estava a fim de conversar. E tinha
medo, sempre tinha medo, daquele olhar penetrante; daquela face pálida que o
estremecia. – Vou só caminhar! Hoje não tenho vontade de conversar, por que não
me deixas? – Te deixar! Sorria sempre maliciosamente, quase zombeteiramente. – Como
te deixar ingênuo, não vês que já foi esquecido por todos? – Quando vais
aceitar que eu te mostre os céus e a terra ao avesso do que sempre acreditou, do
que sempre sua visão e sua imaginação tosca lhe mostraram, da sua ignorância? E
riu, aquele riso que sempre tomava a noite. Passou a caminhar mais rápido,
dobrou uma esquina pra ver se ele sumia, aquela face atormentadora, se aquela voz
também sumia e aquele riso o deixava. Sentiu de novo aquele estranho calafrio,
aquela dor no estômago, aquela angústia e aquele medo das palavras quando elas
parecem tão descabidas, tão fora da lógica e dos sentidos com os quais se
acostumara. Que bom que ninguém mais o notara! Foi tomado de um grande alívio
quando não mais o sentiu, o viu, na sua frente, ao seu lado, no seu encalço. Um
vento frio, quase gélido, arrestou tudo novamente pela noite e o silencio
aterrorizador do pequeno bosque escuro, de vielas enegrecidas, fez com que
aligeirasse mais ainda os passos assustados. Quase corria. – Melhor o claustro!
Pensou, enquanto fugia daqueles vestígios, daqueles sentimentos e sensações
indesejáveis.
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