Esboço para um sonho
 
Tenho em mente uma viagem
Um passeio acalentador pelas praias de areia fina
com águas tão azuis quanto seus profundos olhos.
Planejo há tempos essa mais importante das minhas viagens,
confesso que não estou preocupado com as malas, arranjos de última hora, precisão nos horários de partida e chegada, tudo isso é tão maçante, embora necessário.
Estou preocupado, diria atacado pelas sensações prévias de coisas maravilhosas que me virão. Sinto já as tardes e aquele frescor do vento que lambe meus pés, joelhos, todo meu corpo.
Deitado languidamente na areia morna. E aquele azul tocando o ocre crepuscular, me deixa tão complacente, que de cara perdoo todas as tuas ausências, todas as tuas partidas e todas as vezes que quebrou meu coração, deixando-o como um vaso estilhaçado no chão. E é de recriá-lo a partir de cacos, como um Frankenstein onírico que toma como sua máxima arte os próprios remendos, os estilhaços, as partes que se juntam no todo que sempre se quebra, que ele se fez como minha suprema arte; arquitetura indizível e poética do meu espírito e corpo, intermediários do cosmo.
Por mais que insistas em morrer, evanescer-se perante mim, mais a amo e tomo posse de ti em meus desejos.
A preparação para uma viagem é sempre tão angustiante; coisas a se ver, coisas a não esquecer, roteiros, planos, tudo o que a entorna e a deixa quase que uma coisa realmente enfastiante; mas tudo isso pouco importa.
Já vejo depois meus pés marcando profundamente a areia úmida, e a deslinearidade das montanhas no horizonte, mergulhadas naqueles tracejados de marrons, vermelhos,
azuis e brancos.
Abrirei uma bebida à medida que avançar a noite, uma que seja digna de celebrar o profundo amor e a saudade, como companheiros eternos que tenho comigo. Mantenho sempre a embriaguez, porque é sóbria, e a alucinação, porque é o real atrás do fantástico.
Há muito tenho em mente essa viagem, e até digo que toda minha vida foi feita de viagens; transitando por cenários trágicos, cômicos, cultivando amores intensos e saudades. Estive tanto sempre imerso nessas jornadas,
que até acho que sou uma espécie de transitória materialidade do delírio. Não vou à procura nessas viagens de uma suposta identidade minha, pois que tu sempre
me desidentificas do que em mim permanece. E é somente nessa aérea antimatéria que se encontra
qualquer possibilidade de um eu mesmo. A cópia entristece, tanto quanto,
também, a possibilidade do autêntico logo aborrece.
Mas minha mente não se desata dessa viagem; me vejo agora com os pés nus,
imersos num rio que corre, a correnteza corre contra mim, mas que me
atravessa. Ela é gélida e penetrante e de repente me vejo com
asas prontas para qualquer voo, o primeiro voo,
o último voo.
O vento traz algumas perenes gotas de chuva; olho para cima, em
busca do nada e o verde dos meus olhos penetra nas nuvens.
Pássaro cósmico sou, com o corpo coberto de penas de vento e água.
Recito um poema:
“and as the windshield melts
my tears evaporate
leaving only charcoal to defend.
finally I understand the feelings of the few.
ashes and diamonds
foe and friend
we were all equal in the end”.
Mas isto muito repentinamente te faz desaparecer do escorço do meu plano,
repentinamente imergindo na penumbra das minhas quimeras.
Num certo desespero agarro a última ponta de luz,
do sol que me habita, trago-a queimando junto ao meu peito,
para que o calor faça sempre brotar a fruta doce do
coração.
“A qualquer tempo sonhar, a toda hora nascer... a todo amor se entregar
sem medo de se perder...”
Recito silenciosamente outros versos para capturar
como companheiro de senda, o luar.
E então, silenciosamente,
sou qualquer esboçado sonho
mergulhado na eternidade do teu olhar.

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